sábado, 30 de junho de 2007















 
 
 

Pausa*

Pausa
silêncio em mim eu quero
uma trégua efêmera nessa vã batalha
Que importa se lá fora “eles” tecem
com finas teias, sua nova poesia?
Aqui por dentro sou solidão e abandono
sou minha redenção e minha própria agonia
Nessa noite-mais-uma
onde dentro de minutos os vampiros brancos
virão cobrar a lucidez
que nem mais sei se deveras tinha
eu, sofro a dor do cansaço
Cansaço infindo, cansaço insano
cansaço das dores-eletrochoques
cansaço de loucuras e luciduras
cansaços cansados de longas noites frias
Aqui nada mais quero
nem luta, nem glória
porque quase nada sou
sou apenas uma tênue e vã figura
o abandono e o esquecimento
dos que se deixaram lá fora.


* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

domingo, 17 de junho de 2007



O circo*

A dor?
Trazer sempre um circo na cara.
Ser como os palhaços, os mágicos:
sorrir, e sorrir sempre
— enquanto a alma é dormente.
Saber dizer o porquê da queda dolorosa do trapezista
que na alma habita?
Furar a lona.
Fazer um inventário impossível do circo-mundo talvez...
A queda não tem lógica.
A dor é.
Ah, a qualidade do espetáculo...
A platéia precisa de sangue —
e o palhaço do riso.
Sorrir para os que nos olham do alto como os trapezistas.
Dos que tentam devorar-nos como as feras...
O espetáculo não pára, é como o tempo.
A dor?
A escuridão é tão cômica...
É só olhá-la bem de perto, quando o elenco se vai
e no palco o espetáculo é o próprio Eu:
o momento inevitável de ser o show
— o palhaço-vizinho comedor de crianças
— o mágico que faz sumir o alheio para sobreviver
— o trapezista míope de tombos tantos
— o domador covarde que foge das feras
— o público medíocre da platéia nos espera...
Uma espera sem fugas, seja qual for o lado em que se

                                                                               [esteja.
É preciso não tremer no momento terrível e irremediável
— enfrentá-los a todos, a nós mesmos...
Ah, a qualidade do espetáculo...
Trazer sempre a cara nua e a alma clara.
Trazer a alma e a cara de uma forma ou de outra.
Ser como a dor, ser...
Sorrir, e sorrir sempre, do grande Circo que somos...
O espetáculo não pára.
Senhoras e Senhores:
sorriam...


*poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha (um outro “eu” do autor,
de óbvia inspiração pessoana).












Folhedo

Esta folha,
manchada de versos,
leva-a o vento, o tempo.
Vai cair lentamente imprestável
no leito morno da sarjeta.
É preciso manchá-la,
matar a monotonia das linhas retas e brancas.
Esta folha,
d’antes limpa, imaculada,
manchada, imprestável, morta:
é adubo, estrume.
Vai cair sobre o campo árido e extenso,
indispensável (quem sabe)
para colheita.

sábado, 9 de junho de 2007



Os vaga-lumes

O que brilhará numa noite assim,
se a escuridão, implacável,
despenca das alturas?
Quem cantará,
se o canto certamente irá morrer
na indiferença desértica da planura?
Numa noite assim,
os vaga-lumes, assim, os vaga-lumes,
ainda assim, brilham...
Com suas asas rotas,
elevam-se no ardor do sonho inefável
de sua sã loucura.
Os vaga-lumes vagam...
Com suas pálidas chamas
brilham...
(E ao brilharem assim
até parecem cantar).

Herdeiros da perdida glória
da distante claridão,
os vaga-lumes vagam...
Herdeiros pobres do era,
com suas tênues lâmpadas
a noite afrontam...
Procuram na miséria das trevas
migalhas do perdido brilho
do puro ouro da passada manhã...
Os vaga-lumes vagam...
Pobres indigentes,
afundam-se na escuridão
e ainda assim
brilham...

quinta-feira, 7 de junho de 2007













413: fechado

        Para Hildo Machado

Ontem,
na superfície da noite:
a lua,
damas noturnas nas calçadas,
um lavador dos mesmos carros sujos de sempre,
mulheres pernetas,
caolhas,
sifilíticas,
concretas,
imaginárias,
bem-amadas,
mal-amadas...
Tudo estava como sempre esteve...
Porque “nada muda”,
nada deve mudar “a harmonia da paisagem
tão plácida”...

Ontem,
nas profundezas da noite:
(olhando bem...)
algo havia mudado...
Havia uma janela que insistia em ficar
antiesteticamante fechada
(antes havia uma luz naquela janela...),
a noite estava mais escura,
sem lua,
e as damas noturnas,
o lavador de carros,
e as mulheres todas,
mais tristes.

E a cidade?
(ah, a velha cidade...)
in(ex)plicavelmente mais velha...

terça-feira, 5 de junho de 2007

Outras navegações

 












“Nenhum artista tolera o real”, diz Nietzsche. É verdade; mas nenhum artista pode prescindir do real. A criação é exigência de unidade e recusa do mundo. Mas ele [o artista] recusa o mundo por causa daquilo que falta a ele e em nome daquilo que, às vezes, ele é.

Albert Camus (1913-1960), in "O homem revoltado"

sábado, 2 de junho de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



Olhemos as calçadas

         Ao poeta João Domingues de Melo

Andarilha sempre a olhar as calçadas,
como quem escreve ou lê nelas
algum poema deixado...
No passado (e é bem verdade),
houve um tempo em que
ao final de cada dia
(no fundo da algibeira)
infalivelmente deixava
quatro poemas contados...
Agora (coisas do tempo)
disseram-lhe porém para conter a poesia...
E ele segue, solitário
(alquebrado pelo tempo)
a olhar ainda mais
os poemas das calçadas...
Cumpre, resignadamente,
o seu difícil regime poético...
E sempre que encontra algum jovem
(que por acaso julga ser poeta)
diz, com sua coloquial humildade:
— Não, vocês é que são poetas...

Como ele, olhemos porém
as calçadas do tempo,
e digamos todos:
— Não, seremos talvez poetas
(quem sabe se amanhã não seremos soldados?)
e só quem há tantas primaveras
nas calçadas do tempo escreve poesia
pode dizer-se poeta...

24.09.92