terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Poemas do livro "Folhedo" (Continuação)


Enfim

À memória do poeta que se foi.

Um poeta morreu,
e a cidade, assim, ficou mais muda.
No entanto, os que passam pelas ruas,
cotidianos, prosaicos, indiferentes
nem sabem que a voz do poeta feneceu.
Suas palavras, seus versos,
sua dor, suas insônias
são agora, mais ainda, um nada inútil
para a cidade e seus donos.
Como seria triste se o poeta
pudesse ver como tão logo o esqueceram...
Mas o poeta está morto
e assim, essas vossas pobres indiferenças,
enfim, não mais o ferem, não mais o matam.

sábado, 1 de novembro de 2014
















Canto ofertado aos que para cantar sempre vieram
(E foram céus, e foram mares, foram penedos)
 
Sim, poderia ter sido vós, minha irmã.
Sim, poderia ter sido vós, meu irmão.
Mas recaiu sobre mim (sem que me fosse pedido),
Ser só erguido, uma noite, sobre a cidade calma.
E do alto obscuro e magnífico da tormenta
– Eu, o fraco, o triste, o sem desejo;
Eu que não vou, nem permaneço;
Eu, o perdido no vento e nas páginas do tempo –
Ver! Ver! Ver!
 
Ver as pedras serem erguidas para a construção dos
                                                                          [templos,
Ver os holandeses em suas caravelas e os Caetés,
                                             [às margens do Opara, cantando;
Ver os quilombos dos fugitivos e os sete engenhos do São
                                                                                   [Francisco,
Ver os currais e os franciscanos, com seus buréis, antigos;
Os Lemos, os Leais, os Barros, os Calixtos,
As primeiras procissões e as mãos que talharam as faces dos
                                                                                      [cristos!
 
E assim, ébrio das visões dos tempos idos,
Coube a mim levar sobre os ombros frágeis, desnudos,
O peso da Tradição e do Destino,
A escuridão de todas as solidões e o Sol bendito;
Ser Romariz, e ser de Barros, o Fernandes,
O trono do Barão e a boemia de Juca (o “Palito”),
Os versos de Ignácio e as histórias dos Batingas;
Ser Carvalho Sobrinho e ser Catarino,
Ser Antônio Pedro, ser os Phidias, ser Cesário,
Portos, Santa Ingrácia, o sino matutino...
Tudo, em turbilhão, em cor, em Luz, em carne e em Espírito.
 
E morto mil vezes, mil vezes ressuscitado,
Agora trôpego pelas calçadas, pelas sarjetas, sou ainda
                                                                            [Sabino
E sou Castanha...
As mãos de Higino, as telas e os pincéis dos Santos,
                                                       [dos Moreiras, dos Silvas,
O Estandarte da Companhia, sendo Dionísio e as máscaras do
                                                                                         [divino,
As pedras do rochedo e a morte anunciada do rio peregrino;
Sobrevivo nos Mauricinhos, nas Graças, nos Chicos, tantos
                                                                                             [anônimos,
Sendo Freire, sendo Domingues, sendo Oliveira – como foi
                                                                               [Ernani,
Foi Maurício Gomes – e Hildo Machado em sua cadeira,
Ah, sendo uma coletânea inteira!
 
A mim, a mim, meus irmãos
Coube berrar nos teatros e nas praças, diante das plateias
                                                                                  [mudas
Tudo o que foi – e não mais será.
Tudo o que poderia ter sido – e não é.
Tudo o que canta e chora, todo o instante passado e o agora.
Tudo.
 
Perguntais quem sou, perguntais quem sois.
 
Eu, vindo do circo e das arenas,
Fiz os espetáculos, toquei a música triste e serena,
Pintei as telas, a face de Maria para as novenas,
Fiz os versos e as histórias que ninguém presenciou nem
                                                                                   [acredita.
Eu, o pensante, o louco, o livre, o futuro, o eremita;
Eu o artista, o som da lira indolente
Que canta junto às pedras, na voz do rio.
Luz dos céus, fronte de nossos avós, fibra dos que não têm
                                                                                    [medo,
Eu que cantei canções inúmeras, e também essa, além:
                “Eu tenho uma estrela suprema de Artista
                E tenho uma glória que muitos não têm”
Sou eu, sou eu, lembrai: que eu sou vós, e que vós sois
                                          Eu...
                                            

terça-feira, 16 de setembro de 2014












Poema para o povo
 


Para o povo este poema.
O povo, entanto, não o lerá.
O povo, neste momento, está morrendo
– sob as marquises, nos sertões, nas favelas
– nos viadutos, nos canaviais, nas vielas.
O Povo, poeta, não lê.
Disso decorre que o verso não vale a pena.
Disso decorre, poeta, que o teu poema
não serve para nada.
Disso decorre que não estás fazendo a tua parte.
E se não fazes, num poema, a tua parte, poeta
a tua parte não está em parte alguma.
Poeta escreves: para nada.
Pátria futura, construção da igualdade, mundo sonhado
nasce e morre com uma inconseqüência abjeta
– neste teu verso inútil, poeta.
Não mudas, não mudas o mundo.
Poeta, não mudas nada.
Decretada, desde sempre, a tua sentença:
– Aprende, poeta, de uma vez por todas,
a viver sem poesia.

sábado, 23 de agosto de 2014

 
Meu Hino

Não as tuas palavras, etéreas e descarnadas,
tão distantes do meu ínfimo dia-a-dia.
Nem uma comoção, lampejo, elevação
na tua sintaxe que se quer perfeita, como uma destas utopias
sepultadas na poeira das décadas.
Não a tua melodia, minueto francês, valsa vienense
sem sangue, tronco, senzala, carnaval, quilombo, taba.
Nem uma emoção, deslumbre, contrição
na tua partitura exata, mofo dos faustos imperiais.
 
Nada, nada disto me comove em ti, Hino do meu país.
 
E no entanto lacrimejam-me os olhos ao ouvi-lo:
antes do último jogo, Seleção perfilada;
depois da última medalha, um de nós no pódio mais alto;
após o pleito, vitória da próxima esperança a ser mutilada...
 
Desconcertadamente, aquele embargo na voz,
aquela opressão no peito, frio nas mãos
– quando te ouço, meu Hino.
 
Por certo não choro em ti a última cassação do ACM;
o óbvio FMI, esta violência, esta bandalheira que passivamente sustentamos;
teus meninos nus, tua fome, a mais medíocre das elites, teus latifúndios;
teu Presidente metalúrgico, perdido
entre as minúcias do joguinho do Poder
e a grandeza dos milhares de sonhos, Pátria justa, Mundo melhor,
que muitos sonhamos.
 
Mas lacrimejam-me os olhos...
Caso patológico, projeção de dores minhas,
cinismo, ingenuidade, desperdício?
 
Ridículo dizer, vejo o meu país ao ouvi-lo, meu Hino.
Não este em que vivo, este por demais conhecido.
Mas um outro que virá, quando não sei.
Aquele que poderia ser, e não é.
Aquele que nunca foi, e talvez nunca será.
E no entanto vive em meus sonhos.
Sobrevive dentro do meu peito
como um membro amputado sobrevive na memória do corpo.
Como dói sonhar assim, quando a realidade, demente, nos desmente.
Quando as utopias estão morrendo, e ainda assim é preciso insistir...
Porque creio, como uma sina, e porque mereces
– só por isso, choro ao ouvi-lo, Hino do meu país.
 
29.09.2003

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

              Adeus, Mestre Sala

                   À memória do amigo Salatiel Cupertino

         Quem cantará agora?
   Quem irá agora encher
   as noites dos bares e o coração da juventude
   de alegria?
   Onde está o Mestre Sala?
   Por que foi embora deixando aqui o violão
   e o seu chapéu de guerreiro,
   sua honradez e o seu justo canto?
   Sabemos no entanto que ele foi um justo,
   e assim, nós que ficamos
   criamos para ele um lugar mágico
   onde sabemos que eternamente agora ele mora:
   uma enorme praça onde uma grande caixa de som
   recita a música de Geraldo Azevedo,
   e os amigos todos, reunidos,
   tomam cerveja e falam da Verdade
   e do dizer não à guerra.

   Arauto da alegria,
   sabemos o quanto te doía a tristeza humana...
   Não repares nas lágrimas, Mestre Sala.
   Choramos apenas porque estavas com sono
   e foste embora antes do romper d’aurora.
   Mas a festa continua (precisa continuar),
   e nós que ficaremos ainda mais um pouco
   te aplaudimos e te saudamos.

      01.01.93

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Outras navegações


Canção “The clockwise witness” [O observador dos ponteiros, em tradução livre], da banda norte-americana Devotchka (Denver, estado do Colorado); apresentação gravada ao vivo no programa do músico Jools Holland.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Poemas do livro "Folhedo" (Continuação)


 
 
 
 
 
 
 
 
Epitáfio para Salatiel


Cantou,
viveu...
Depois se foi
levado pelas mãos
de São Francisco,
para as profundezas
do sono eterno,
para a eternidade
de sua eterna alegria.

sábado, 8 de março de 2014


                        O Eterno Jardim

                       À memória do poeta Maurício de Oliveira Gomes*

Havia cultivado um imenso jardim de rosas vermelhas.
E todas as manhãs, com suas mãos delicadas,
mesmo feridas por espinhos, em árida terra, vinha cultivá-las.
Era um árduo labor este do poeta...
E, por tanto, todos que o viam trabalhar
sempre  achavam o poeta só, triste e solitário.
Depois vieram o tempo e as tempestades
e as mãos do cultivador ficaram trêmulas.
Um dia então (muitas Primaveras passadas),
cansado, o poeta reclinou a cabeça sobre uma lápide
(para descansar) e adormeceu.
Agora, todos os que passam pelos caminhos
ao verem as suas rosas assim dele ausentes
pensam que o poeta morreu.
Mas olhemos bem...
O poeta agora vive em suas rosas,
invisível, calmamente.
E é só por isso e com esta seiva
que as suas rosas vermelhas não morrem.
 
31.07.1993 
 
* Nascido no dia 11 de janeiro de 1914, Maurício de Oliveira Gomes, o "Poeta das Rosas Vermelhas", se ainda estivesse entre nós, estaria completando 100 anos. A "iniludível" (como diria Manuel Bandeira), chegou antes, em uma madrugada do dia 31 de julho de 1993. Fica aqui registrada, portanto, a nossa homenagem a esse pernambucano que fez de Penedo sua pátria, atuando ativamente em prol da cultura, da arte e da literatura.

domingo, 16 de fevereiro de 2014


                  Epitáfio

                      Para o poeta Maurício de Oliveira Gomes

             Cultivar rosas vermelhas
             em árida terra
             foi seu labor.
             Agora descansa aqui,
             sob a terra,
             entre as flores,
             na eternidade...

domingo, 12 de janeiro de 2014


              Mercury

            Disseram-me, Freddie,
            que a tua voz havia morrido
            – para sempre.
            Mas, à noite, a luz delicada
            de certas estrelas desvairadas
           (pobres astros condenados à penumbra
           das calçadas da minha pobre cidade)
           vêm me dizer que talvez você apenas
           tenha virado purpurina...