sábado, 23 de agosto de 2014

 
Meu Hino

Não as tuas palavras, etéreas e descarnadas,
tão distantes do meu ínfimo dia-a-dia.
Nem uma comoção, lampejo, elevação
na tua sintaxe que se quer perfeita, como uma destas utopias
sepultadas na poeira das décadas.
Não a tua melodia, minueto francês, valsa vienense
sem sangue, tronco, senzala, carnaval, quilombo, taba.
Nem uma emoção, deslumbre, contrição
na tua partitura exata, mofo dos faustos imperiais.
 
Nada, nada disto me comove em ti, Hino do meu país.
 
E no entanto lacrimejam-me os olhos ao ouvi-lo:
antes do último jogo, Seleção perfilada;
depois da última medalha, um de nós no pódio mais alto;
após o pleito, vitória da próxima esperança a ser mutilada...
 
Desconcertadamente, aquele embargo na voz,
aquela opressão no peito, frio nas mãos
– quando te ouço, meu Hino.
 
Por certo não choro em ti a última cassação do ACM;
o óbvio FMI, esta violência, esta bandalheira que passivamente sustentamos;
teus meninos nus, tua fome, a mais medíocre das elites, teus latifúndios;
teu Presidente metalúrgico, perdido
entre as minúcias do joguinho do Poder
e a grandeza dos milhares de sonhos, Pátria justa, Mundo melhor,
que muitos sonhamos.
 
Mas lacrimejam-me os olhos...
Caso patológico, projeção de dores minhas,
cinismo, ingenuidade, desperdício?
 
Ridículo dizer, vejo o meu país ao ouvi-lo, meu Hino.
Não este em que vivo, este por demais conhecido.
Mas um outro que virá, quando não sei.
Aquele que poderia ser, e não é.
Aquele que nunca foi, e talvez nunca será.
E no entanto vive em meus sonhos.
Sobrevive dentro do meu peito
como um membro amputado sobrevive na memória do corpo.
Como dói sonhar assim, quando a realidade, demente, nos desmente.
Quando as utopias estão morrendo, e ainda assim é preciso insistir...
Porque creio, como uma sina, e porque mereces
– só por isso, choro ao ouvi-lo, Hino do meu país.
 
29.09.2003

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