sábado, 29 de março de 2008

                        Anfion after

               Não o escolhido de Apolo,
               Anfion, este que, num sopro,
               forja a sua frauta rústica.
               Mais árida ainda sua senda,
               este, em sua Tebas desértica,
               jaz onde todos os deuses estão
               mortos.

               Não grandiosa muralha ergue
               a melodia que o seu lábio solfeja:
               aqui, só para túmulos erguem-se
               pedras.

               Insano, há milênios sua persistência provoca
               a escuridão das locas, dos covis, das covas
               dos escorpiões, dos gafanhotos, das cobras.
               Inútil, apenas, esse concerto para surdos.

               Por que não se cala essa melodia?
               Louca, louca, essa teimosia calma
               dos que não serão grandes, nem astros,
               dos que não ficarão gravados no bronze;
               estúpido esse desejo de ser além
               do que pode suas ínfimas asas...

               Entanto, ele toca, pobre artista:
               constrói a si mesmo, na sua fantasia;
               faz soar seu débil gemido, que o Deserto vara
               enquanto a música não pára.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Outras navegações

Claustro do Convento Franciscano, Penedo-Alagoas
(Foto da década de 90)

sábado, 15 de março de 2008

Do livro "Beco e labirinto" (continuação)


                       Terçã

        Nós, os meninos
        padecemos de grave doença:
        essa febre de consertar o mundo.
        Mas, que o nosso mal
        não provoque a insânia dos sanitaristas:
        a nossa febre tem cura,
        e a cura é a inevitável calma, da velhice.
        No mundo, abundam os casos dos recuperados,
        são estes saudáveis velhos decrépitos-reacionários,
        que num passado remotíssimo, tiveram todos os sintomas,
        do mal, todos os males.
        O tempo, porém, espera ainda.
        Aproveitemos então nosso delírio,
        com todos os devaneios,
        com todos os suores noturnos,
        com todas as insônias do mundo,
        com todas as quedas e escoriações possíveis.
        Breve estaremos também curados, calmos
        imbecis, tranqüilos, saudáveis, reacionários.
        A cura é inevitável e virá mesmo.
        Enquanto isso, aproveitemos:
        o mundo talvez não resultará melhor por conta disso,
        mas tamanho espalhafato servirá talvez
        ao menos, para a proliferação persistente do vírus
        (já que esta febre boba pode contagiar
        todos os impúberes, presentes e vindouros).
        E assim, no futuro
        quando a santa cura tiver por fim
        em nós se instalado,
        encontraremos um desses meninos contagiados,
        que do alto de sua febre apontará
        um dedo duro para a nossa cara reacionária,
        e dirá, bem revoltado:
        — Vós, que no passado quisestes consertar o mundo,
        não passais hoje de um velho imbecil,
        decrépito e reacionário.

sábado, 8 de março de 2008


                               Árvores

Num dia de verão, dentro dos meus olhos,
negras nuvens encobriram o sol que para todos brilha,
e eu caminhava pela estrada onde todos passam,
com o peso da fadiga sobre os ombros,
e o peso dos meus ombros sobre mim mesmo.
Tudo era escuridão na claridade.
Tudo era nada e nada a esvaziar-me.
A luta: o esforço último e desumano de não me vergar.
Ergui os olhos de terra e chão cansados,
olhei o horizonte por entre escuras nuvens, e vi
diante de mim uma enorme árvore, verde como esperança,
que sorrindo feliz pelas folhas e pelo tronco, disse-me
com a sua voz de farfalhar ao vento:
“Senta sob a minha sombra!
Toma minha calma pelas minhas folhas,
e minha força pelos meus galhos.
Toma a minha verdade como tua: o sol
brilha pelos bosques, veredas, abismos e caminhos,
e toda a luz que há em tudo, sai dos teus olhos”.
Olhei o horizonte por entre as nuvens claras, e vi
diante de mim, a luz dos meus olhos.
Tudo era tudo a preencher-me,
e eu caminhava feliz por um caminho de luz. Não mais
baixei os olhos, nem os tirei das belezas da estrada...
A gratidão: o esforço saudável e humano de não me esquecer.
Lancei um olhar ansioso em busca da árvore amiga,
e deparei-me, com a mesma árvore do outro dia,
tristonha e pálida. O peso enorme de si mesma sobre si,
as lágrimas como gotículas de orvalho de prata
a escorrer pelas folhas frias.
Sorri feliz pelos olhos e pelos poros, e com voz
trêmula e humana, disse-lhe:
“Banha-te sob a luz dos meus olhos!
Toma a minha energia pelas minhas mãos, e da terra
que te coloco sobre as tuas raízes nuas.
Toma minha força das palavras de minha boca.
Toma a minha verdade como tua: o sol
brilha pelos bosques, veredas, abismos e caminhos,
e toda a luz que há em tudo, sai das tuas folhas”.
Olhamos o horizonte por entre as nuvens claras.
Tudo se fez azul na imensidão.
Tudo era tudo a preencher-nos,
caminhávamos felizes por um caminho de luz
num dia de verão...

domingo, 2 de março de 2008


              Luz, estigma

Porque aqui
a luz é sempre muito parca.
Aqui a luz pende em réstias
de furos numa escura cobertura,
sobre uma superfície em penumbra.

Porque aqui
em volta de uma luz assim mortiça,
aglomeram-se por vezes uns famintos poucos
que em desespero tentam vislumbrar,
pelos tênues orifícios,
um breve momento de infinito.

E cai a luz,
aqui sobre um crânio calvo,
ali, sobre uma magra espádua,
além, os rins de um velho cinge.

(Na verdade, a pouca luz que me coube
mal dá para urdir estes versos toscos).

E giram, giram
e assim girando em torno
dos minúsculos pontos luminosos,
são eles tocados de luz ao acaso,
enquanto nas alturas desanda
o infinito orbe.

(Sim, os deuses todos foram perversos conosco...
Por que abrindo em precipício
esta escuridão que nos encobre,
não deixaram eles que nos inundasse
a mais completa luz?).

Eis entanto que aqui, poucos são os chamados
e muito menos os escolhidos. E ainda assim,
aqueles que foram tocados pela claridade,
não a recebem como uma dádiva
mas sim, como um estigma.

                     Do Caminhador

Na noite do Grande Deserto,
o Caminhador, vaga pelas areias ondulantes
com a sua solidão, com a sua dor, sua tormenta;
e quando uma fria aragem sopra do oriente,
o Caminhador, subindo a um monte,
ergue sua mão esquálida,
desamparando seus olhos cegos
que a areia bate, que a areia, areia;
e com a sua mão erguida assim para as alturas,
por entre o caos da ventania, o Caminhador,
espera uma folha desprendida de uma árvore
que só em sua quimera existe além...
Assim, o Caminhador, toma por vezes dessas folhas
que o acaso recolhe à sua mão cansada
de esperar tanto; e vergado pelo tempo, o Caminhador,
recolhe-se a um breve abrigo, para contar as folhas
desta sua pobre pescaria.
Passa assim seu tempo, o Caminhador...
a ver as suas folhas e separá-las,
por sua cor, sua textura, pelo sabor, pela amargura
organiza o seu caos noites inteiras
nesse labor inútil de desventuras, o Caminhador.
Pobre Caminhador,
este folhedo que possui como tesouro
é tudo o que lhe resta,
é seu cobertor, será seu túmulo,
sua glória que não terá.
Feliz Caminhador,
o deserto lentamente o absorve,
e um dia, finalmente
a grande ventania o levará
com suas folhas, como a areia...

                      Minha herdade

          Oh, alva planura, minha herdade...
          Parece-me terem dito:
          – É isto o que lhe cabe.

          Desde então tenho vagado por entre tuas farpas;
          tentado nas noites ermas
          encher de palavras teus quartos vazios;
          com minhas mãos desnudas
          buscado fazer germinar de tua aridez
          flores, ramas de hera, qualquer coisa viva.

          Herdade, herdade
          eu te maldigo, eu te reverencio;
          temo a solidão dos teus escombros,
          as mil portas de teu labirinto de espinhos;
          o frio noctívago de teus campos incultivados,
          teu cheiro de coisas mortas, bolor de velhos
          escaninhos.

          Herdade sombria,
          minha inutilidade;
          preso em ti
          vivo em ti, liberto;
          meu tudo
          meu nada,
          sucessão árida
          desta triste espera.