domingo, 30 de dezembro de 2007












A estrela que passou

Ontem,
passou pela rua e por mim
— e o passado veio chegando lentamente
com a brisa que me trouxe seu perfume.
Passou tão próximo que quase pude tocá-la:
ergui a mão indeciso,
e percebi que estava muito distante
— sempre esteve, ó minha estrela, muito distante...
Só em sonho pude muitas vezes tocá-la.
Só minha imaginação pôde muitas vezes tê-la.
Mas os sonhos se foram,
e como um meteoro
a realidade caiu dolorosamente repentina sobre mim.
Agora,
é apenas um pedaço de meu passado
que passa por mim e vai embora
— deixando-me a rua vazia...

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Outras navegações








 
 
 
 
 
 
 
       Por que escrever? Cada um tem suas razões: para este, a arte é uma fuga; para aquele, uma maneira de conquista. Mas pode-se fugir para o claustro, para a loucura, para a morte; pode-se conquistar pelas armas. Por que justamente escrever, empreender por escrito suas evasões e suas conquistas? É que existe, por trás dos diversos desígnios dos autores, uma escolha mais profunda e mais imediata, que é comum a todos. (...)
Cada uma de nossas percepções é acompanhada da consciência de que a realidade humana é “desvendante”; isto quer dizer que através dela “há” o ser, ou ainda que o homem é o meio pelo qual as coisas se manifestam; é nossa presença no mundo que multiplica as relações, somos nós que colocamos essa árvore em relação com aquele pedaço de céu; graças a nós essa estrela, morta há milênios, essa lua nova e esse rio escuro se desvendam na unidade de uma paisagem (...); a cada um dos nossos atos, o mundo nos revela uma face nova. Mas se sabemos que somos os detectadores do ser, sabemos também que não somos os seus produtores (...). Assim, à nossa certeza interior de sermos “desvendantes”, se junta aquela de sermos inessenciais em relação à coisa desvendada.
Um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo.

 

         Jean-Paul Sartre, in "O que é a literatura?"

sábado, 22 de dezembro de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



Leitos dos homens, mãos dos rios

Meu rio chora,
e todo ele é uma enorme lágrima
— de tristeza e de pesar
por seus irmãos assassinados.
Irmão Tietê, irmãos amazônicos e tantos outros
sepultados inteiros na ganância humana
— cadáveres putrefatos de extensa agonia.

Meu rio chora,
pelas pedras e pelas ilhas
— um choro de prata e de ouro.

Meu rio tem medo,
da incerteza que há após aquela curva
— medo infindo do seu desamparo de velho,
medo de ter o fim de tantos outros.

Meu rio treme,
numa extensa paranóia poluifóbica
— medo líquido de amanhecer não mais eterno.

O meu rio, ah! o meu rio...
Nada sabe da vida nem de mortes,
nem de egoísmos, de ganâncias, nem dos abismos humanos:
só quem o olha vê nele reflexos seus
— reflexos das lágrimas, das tristezas, dos pesares,
dos instintos assassinos, da ganância e da podridão
que não o rio, e sim eles sentem.

O meu rio é feliz:
apenas passa
— sem saber que sua vida eterna e extensa
repousa no leito da limitada mão mortal humana.

sábado, 1 de dezembro de 2007

















Amparos

Meus sonhos voam por estes ares,
por entre estas torres, sobre os montes,
sobre distantes mares
e na superfície deste rio sem fim.
Meus sonhos planam como fantasmas,
como emaranhados de fumaça e brumas.
Meus sonhos vagam à noite por estas ruas
e dormem nus por estas pedras frias.
Meus sonhos cansam, invadem ingênuos estes templos
e rolam ébrios por este chão como entulhos.
Meus sonhos sentam-se nos bares, bebem amarguras
e tragam incógnitos por estas praças vis loucuras.
Meus sonhos já morreram vezes infindas
e por vezes tantas, insistentes, ressuscitaram.
Meus sonhos, têm irmãos inúmeros
que com eles vagam por esta noite incerta...
A meus sonhos só resta esta tênue certeza:
a quase ânsia de saber
que outros sonhos idênticos sonham seres iguais.

sábado, 24 de novembro de 2007



Ponto da Alma

Existe em mim uma praça
onde sento minha alma para descansar
de todas as lutas que nunca travei
e crianças vêm brincar incansáveis
como pássaros ao amanhecer.
Onde me banho de luz
e pondero o peso
da minha pedra-cruz.
Onde parei no tempo vezes tantas
que já nem sei se sou
hoje ou amanhã.
Onde vago pelo passado
(mesmo o que não mais existe decerto)
e ouso traçar pálidos planos,
linhas, curvas e retas
para o meu incerto caminhar.
Existe em mim uma praça
que me espera todas as noites
e onde o tempo passa para me envelhecer.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

 Longe do mar

Nas esquinas das ruas interiores,
existe sempre um anjo
e uma fera também;
velhos de plácidas barbas brancas
e jovens revolucionários.
Velhos como um rio já passado,
velhos cansados da luta com um mar só seu;
um mar sempre terrível e revolucionário,
como seus jovens filhos.
Filhos revolucionários de velhos pescadores
cansados da luta:
da luta com as feras das veredas ancestrais,
da luta com a placidez dos anjos templários.
Nas esquinas das ruas interiores,
há sempre um guerra e uma paz;
uma trégua precária consigo mesmo,
uma guerra terrível com os demais,
uma paz eterna e imutável
e um acenar inevitável de bandeiras rubras.
Nas esquinas das ruas interiores,
há o que existe em todas as ruas do mundo:
velhos, feras e revolucionários,
rios, templos e anjos plácidos,
lutas, tréguas e bandeiras vermelhas.
Nas esquinas das ruas interiores,
há sempre um poeta que fala de ruas
e alguém que vai à luta contra
o mundo, também.

sábado, 10 de novembro de 2007
















Grãos

Um grão de areia perdido na praia observa as ondas
que vêm-e-vêm encharcá-lo de monotonia.
Se ele fosse o mar seria feliz.
Se ele fosse o sol.
Se ele fosse um homem.
Se ele falasse, se ele gemesse, se ele gritasse.
Se ele morresse.
Se como uma Deusa, uma moça nua, de pés descalços,
andando na praia, sobre ele pisasse —
seria feliz...
Mas o sol se põe tristonho,
o mar monótono geme baixinho na penumbra
e um homem calçado caminha calado pela praia vazia.
Se ele fosse um grão de areia...
como seria feliz!

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



Apolo Zero

um astronauta flutua pesadamente no espaço
move-se em câmera lenta
nadando no vácuo imenso
procura atingir uma nave
fixa e tão próxima que até parece
inatingivelmente distante
como a Terra lá embaixo
azul e girando lentamente
um homem desce uma rua
pesadamente vazia
flutua no vácuo imenso
procura atingir o nada
flutua e gira e anda
pela rua azul de luz
anda pela rua vazia
sua solidão é igual a do astronauta
flutua em câmera lenta
no espaço da rua vazia
que ouve o grito e o silêncio
que o homem traz por fora e por dentro de si
onde está a minha Terra azul de sonhos?
lá embaixo, girando lentamente?
onde está minha nave inatingível?
acordo sem respostas!
com as imagens esfriando nas retinas...
noites e noites tenho sonhado
com meus passeios noturnos por ruas vazias
e com um astronauta flutuando pesadamente no espaço
move-se, em câmera lenta
eu desço por uma rua vazia

domingo, 28 de outubro de 2007



O Tempo, a Mosca, e a Teia

Uma Teia de aranha balança lentamente
Grudada entre uma parede e o fio de uma lâmpada
Balança com o vento em movimentos quase rítmicos
Arfando na ânsia de sair da inutilidade
Arfando na ânsia de capturar uma Mosca inexistente
Voa em círculos nos pensamentos circulares de um cara
Parado entre uma parede e uma rua
Balança com o vento numa imobilidade quase rítmica
Arfando na ânsia de fugir da inutilidade
Arfando na ânsia humana de capturar um sonho
Enquanto (isso), no silêncio do espaço
Vestido de luz e trevas, perambula o Tempo
A comer as moscas e a matar os sonhos
A romper os fios da Teia e os cabelos do cara
Encostado na parede anos após anos envelhecida
Como as outras paredes que constituem a rua
Cheias de caras que sonham, de moscas e de teias...
No decorrer de um rápido ou longo instante
O Tempo transformará os sonhos, a inutilidade e tudo isso
Em nada...
Tudo e todos em nada...

Mas sem perceber o Tempo a passar rapidamente
Continuamos encostados numa parede, diante de uma rua vazia
Pensando numa maneira de fugir da insignificância
Arfando na ânsia de realizar nossos sonhos humanos
Enquanto observamos uma Teia inutilmente grudada
Entre uma parede e o fio de uma lâmpada
Balança com o vento em movimentos quase rítmicos...

sexta-feira, 19 de outubro de 2007



A Ilha Circunscrita (Marasmos)

Os dias são ondas crônicas no vaivém,
E a praia sempre está estupidamente vazia,
Cheia de tédio, solidão e só...
Nem um náufrago mal morto nela aporta,
Nem um farol vermelho brilha na noite morta...
Só ondas batendo pesadamente numa rocha surda,
E à noite, bilhões de lâmpadas com defeito
Piscando na cobertura da minha ilha...
Mas...
Pela manhã eu pesco nada e sonho,
Com a terra-continente que me sufoca
Com mil planos de fuga,
Que resultarão em tudo aquilo que nunca farei...
E então, continua todo do mesmo jeito:
As ondas crônicas,
A praia vazia,
O dia de pescaria...
E lá se vai minha vida,
De repente, numa noite feliz, quem sabe...
Se pelo menos ele fosse vermelho...
Minha ilha seria... inconcebivelmente diferente:
Não precisaria de náufragos,
Nem de faróis vermelhos,
Nem de sonhos, de fugas, nem de planos...

Mas ele não pára de cantar,
De ressuscitar esperanças mortas,
Não pára de não me matar,
De me encher de promessas não cumpridas
Como me fazem os que passam em seus navios
Ao anoitecer
Em pé sobre a praia,
Com a cabeça cheia de garrafas vazias,
Só me resta culpá-lo por todas as coisas
Que não aconteceram na minha ilha...
Maldito mar, simplesmente azul,
Simplesmente mar.

sábado, 13 de outubro de 2007











Re-Vis-Ando*

Leve ser alado
negro-anatômico-fisiológico
pousou numa linha
reta
morta
flutuante na atmosfera quente do sertão.

E eu espremo meus miolos
porque um urubu pousou num galho seco da caatinga
pra dar uma cagadinha!

(Pobre do Caeiro, que dizia:
“faço minha poesia como o levantar do vento”
— e se achava moderno).

Ser moderno é ser
Darkfazer construções aliterantes
anagramas shakespearianos, esdruxulismos verbais
construções plasmáticas, inversões filosóficas e...
merdas camufladas.

Será que ser moderno
é ser ultra-incompreensível?

Bibliografia.
Dicionário Ilustrado, Revisado, Aurélio Buarque
(onde averigüei o cunho vernáculo de um vocábulo).
Enciclopédia Sotádica Britânica.
Tabela de co-senos.
Bíblia Sagrada.
Amém.

*poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha (um outro “eu” do autor,
de óbvia inspiração pessoana).

sábado, 6 de outubro de 2007



Deus Século XXI*

Em verdade em verdade irmãos, vos digo: oremos
ao Deus da nova era
ao Deus lógico do Big Bang, ao Deus cético
ao Deus sem barbas nem túnica.
Oremos ao Deus indecente, eroticamente nu
ao Deus sem forma nem formalidade dos cultos
ao Deus sem trono nem tribunal
ao Deus-álibe, ao Deus cúmplice.
Oremos ao Deus informe e desumano
ao Deus comunista? capitalista? político-corrupto?
ao Deus do livre arbítrio social
ao Deus do “que se matem”
ao Deus do “que morram secos de seca”
ao Deus do “não farás a SENA”.
Oremos ao Deus que não criou as sociedades
nem os céticos, nem os místicos, nem os comunistas
nem os capitalistas-políticos-corruptos
nem os assassinos, nem o Nordeste, nem a seca
nem os nordestinos.
Oremos ao que nunca fraudou a Previdência
nem a Caixa Econômica.
Oremos ao que não existe.
Oremos ao que só não existe no homem
(já que orar a nós mesmos tem sido constante).
Oremos à chuva, à terra lindamente ressecada, aos cactos.
Oremos ao Sol que é a seca que é Deus.
Oremos às matas e aos rios eternos
aos montes, cavernas, às estrelas que brilham
aos vermes, bacilos, minhocas e esquilos.
Ou melhor: oremos ao mundo
(já que esse Deus-não-egoísta não aceita bajulações
nem sair na capa da Times
e prefere o anonimato de suas auto-realizações).
Oremos à dúvida.
Oremos à capacidade humana de duvidar e destruir até
(pasmem!) os Deuses. Oremos
Mas em verdade em verdade, vos digo:
Deus nenhum lhes escutou ou escutará.
Irmãos racionais, irracionais e inocentes
oremos ao e para o Mundo.


*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

Outras navegações















Aspecto da cidade de Penedo, vendo-se a Praça 12 de Abril (praça da Pousada) na década de 1930.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)

















O Salto*

Um João anda pelas ruas cheias de Zés e de Marias.
Anda pelas ruas que lhe levam a lugar nenhum.
João pega um ônibus e corre atrás de seus sonhos
(Que não andam de ônibus, voam)...
João vai trabalhar na sua decepção dos outros.
João bebe amarguras.
João, sentado na praia, conta as ondas inúteis do seu Mar
(Que está de ressaca)...
Na segunda-feira, João sobe num viaduto e não flutua no ar
(Como se fosse pássaro).
Quem é João? (caindo).
Quem foi João? (bateu, espatifou-se).
Um herói? Um poeta? Um louco? Um covarde?
Quem seria João?
Ninguém sabe...
Nem mesmo ele sabia.
Passou na vida procurando respostas:
Nas ruas, nos ônibus, na decepção, nos copos, à beira-mar...
João agora é uma mancha vermelha no asfalto
E uma manchete nos jornais.
Pobre João...
Agora João é as estrelas,
É as pedras e o ar,
Poeira, terra e micróbio,
Rio, cachoeira, fogo e mar.
João é partículas esparsas.
João ficou eterno.
João virou Deus.


*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

sábado, 15 de setembro de 2007



Mamíferos*

Os teus dois seios parecem dois cervotinhos,
filhos gêmeos duma gazela.
......................................................................
A tua estatura é semelhante a uma palmeira,
e os teus seios a dois cachos de uvas.

              Cântico dos Cânticos

Amamos a rigidez muscular oculta sob sedas.
Amamos a fragilidade morena, rosada, clara, cor de leite, ébano.
Amamos a sua geometricamente cônica forma.
Amamos o desejo indisfarçado de vê-los no seu natural
abandono.
Sabemos os segredos de todas as Evas.
Sei-os, sabes, sabemos —
E os queremos, tentamos ao menos.
Desejamos descobri-los, tocá-los, comprimi-los,
Reviver nossas refeições infantis,
Sentir seu calor maternalmente erótico.
Desejamos em sonhos diurnos, noturnos, quiméricos.
Sabemos o óbvio de todos os corpos femininos.
Sabemos, sabes, sei-os —
E inevitavelmente os queremos:
Com todas as suas fragilidades cutâneas, carnais, felinas.
Sim, amamos, sem medidas (nem tamanhos),
Naturalmente, instintivamente , brasileiramente...
Mas sem afetação psicológica —
E atestados do INSS de que não somos tarados.


*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

domingo, 9 de setembro de 2007



Ciclo urbano*

Os idiotas interioranos
sonham em ir para a capital.
Os capitalistas em ir para o “Coração do Brasil”.
Os neuróticos (além de às putas) para onde se fale inglês.
E los gringos, com que será que sonham?
Em passear de submarino por um rio marciano?
Que nada:
sonham em ser idiotas interioranos.


*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

sábado, 1 de setembro de 2007














 
Eletrochoques*

Sou contra a revolução pela revolução.
Revoluções devem ter metas atingíveis.
Pra que gastar energia
dando eletrochoques em defuntos?
Os terceiros mundos estão mortos
e em adiantado estado de putrefação.
Minha pátria? Mais ainda!
Esse nordestezinho-agrestal? Mais ainda!
Minhalagoazinhas? Mais ainda!
Penedos, Jaboticabais, “minha terrinha”?
Muito, muito mais ainda!

Nos Esteites, nas Oropas, nos Japães
existe vida intelectual-raciocinante
e mesmo assim continuam buscando a morte —
nas mais diversas formas de suicídio.

04/05/90

*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

sábado, 25 de agosto de 2007

















    
                  Enigmas*

           Anfisbenas
           transbordal
           bendegós
           NASA
           tabela de co-senos
           dificuldades rácio-lógico-ordenal

Decifra-me
ou me devoro
e aqui pra nós: pelo amor de Deus!
— se não morro de fome!

*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Verso maior



Minha estrela

Nasci pobrezinho, qual ave do bosque;
Eu tenho uma estrela que Deus me guiou,
— Um cetro supremo e sublime da Artista ―
E nem por impérios tal estrela eu dou.

Eu trago na fronte tão loiro diadema,
Mais loiro e mais lindo que a luz das manhãs!
O sol me desperta em meu leito de espinhos,
As flores dos campos são minhas irmãs.

Debalde a riqueza me cobre de insultos,
A inveja tropeça na linha em que vou,
Eu tenho uma estrela radiante de Artista,
É um timbre infinito — foi Deus que timbrou.

Sou órfão de amores, sou pobre de afetos,
— Não tenho carinhos jamais de ninguém —
Eu tenho uma estrela suprema de Artista
E tenho uma glória que muitos não têm.


Sabino Romariz*

*poeta maior penedense (1873-1913).

sábado, 18 de agosto de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)
















 
 Meninos (do bairro e do barro) vermelhos*

Os meninos do bairro vermelho
não são comunistas não
São come dores do barro vermelho
que a pátria cria
Pálidos canibaizinhos, antropófagos literais
de en carnados barrocais.


* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

sábado, 4 de agosto de 2007



De Toupeiras e Túneis Lendários*

Disse-me um amigo
(e aos loucos cabe a essência das coisas verdadeiras)
que vieram ao Brasil os frades
não para sagradas palavras pregarem
na dolorosa rotina dos deveres pastorais
mas para largos buracos cavoucarem
tal qual toupeiras divinais
— profundos túneis imaginários
nas terras brasileiras.


21/08/90

* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.


Grama ti cais*

Sempre amei os gramáticos
— dóceis velhinhos de lindas cabeças branquinhas.
Nunca conversaram com o povo
nem sabem onde ele mora...
Mas falam muito bem sua língua,
defendem com unhas e rugas suas cadeirinhas.
Não sei se devo chorar a língua — que é morta —
ou a eles, que a querem assim, defuntinhos.
Ambos, certamente, merecem nossas mais sinceras
condolências.


* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.









 
Perestroika*
 
Mil vivas a Gorba
(e sua manchinha craniana)
pela capacidade (insana?) de invalidar
anos e anos de utopia...
Marx, meu velho, tua fome foi em vão...
Camarada Lenin, dorme... tua luta foi em vão...
Trotsky, pobre de ti... tua fuga foi em vão
novamente...
Stalin, Stalin... tua megalomania teve por fim
alguma serventia.
Mil vivas ao triunfo do egoísmo humano
e sua apologia.
Uma prece fúnebre ao sonho impossível
da igualdade humana...
Que venha a perestroika da vizinha...

*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

domingo, 29 de julho de 2007



Genésico*

No princípio
existia apenas um grande quarto
mergulhado em profunda escuridão.
Era um enorme quarto
cujas paredes estavam além do infinito.
Era um enorme quarto
sem porta nem janela de vidro,
profundamente vazio e cheio de vácuo.
Estava fora do tempo,
ou, simplesmente, não existia tempo entre suas paredes.
Mas, de repente, apesar de vazio, um espírito vagueia
sobre as águas do quarto não mais vazio.
Há milhões de anos no quarto sem tempo ele vagava.
Havia surgido do nada.
Talvez do vácuo imenso...
Com certeza ele não entrou pela porta existente
no quarto sem portas.
Com certeza ele não arrombou a janela de vidro
existente na parede do quarto sem paredes...
Simplesmente ele surgiu do nada.
E depois de tanto tempo, ele não gostou nada
da decoração de sua sala:
da escuridão infinita do seu quarto infinito;
da solidão infinita da sua existência infinita...
E num determinado momento de mau humor
ele resolveu modificar a monotonia:
para isso, antes de tudo, um teto
para o seu enorme quarto sem paredes;
depois, uma pequena esfera
redondamente sem forma e completamente oca;
uma lâmpada pendendo do teto
para iluminar a escuridão do seu quarto sem luz...
(Apesar de sempre ter vivido na escuridão,
ele gostou tanto da luz que se arrependeu
de não ter pensado antes em fazer o Sol e separou
as trevas da luz.
Assim, a partir desse momento, o quarto
passou a ter o tempo
a trazer os dias e as noites,
a envelhecer as coisas).
Quis também um piso onde pudesse secar os pés
da umidade das águas do mares
que cobriam o piso do quarto sem piso...
Feito isso, quis que do piso brotassem as ervas
e muitas árvores com deliciosas frutas;
quis também que o teto tivesse
milhões de buraquinhos
que piscassem durante a noite.
Depois, ordenou que as águas e as terras fossem
infestadas de animais, insetos e outros bichos
bem bonzinhos...
Por fim, finalmente, para curar a sua solidão
pensou em criar alguém semelhante a si mesmo
(apesar de ele mesmo não se assemelhar a coisa alguma);
pensou em criar alguém com quem conversar,
dar ordens e criar leis
para depois poder jogá-lo num foguinho
bem gostoso
descansou
bem gostoso...
até o dia em que a tal criatura muito cheia de si
pediu uma companheira para brincar de se esconder
e acabou comendo
a sua ma-ça-zi-nha...


*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

domingo, 22 de julho de 2007

Outras navegações












Das pedras em flor

       para Francisco Araújo

Crescem suspiros de angélica
sob um luar de marfim.
Da torre do campanário
espiam mochos sisudos
o silêncio da cidade
serena no seu dormir.
E o cheiro branco, narcótico,
crescendo junto com a lua,
vai formando espessa névoa,
cantante bruma gelada.
Vai entrando pelos sonhos
dos poetas que já dormem,
vai entrando pelos versos
daqueles que ainda velam
poemas por acabar.
E o bronze do campanário,
tonto de tanto luar,
canta as pedras, canta o rio,
canta a rua de sobrados,
canta o Penedo inteirinho
numa canção perfumada
de lento amadrugadar.


*Alzira Freire

*poetisa penedense, é autora do livro Doce de vidro;
poema incluído no livro De flor e vento plena.

sábado, 21 de julho de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



                                Aquilo*

                           Para Bella Lugosi

Meu caro rapaz:

Soube do seu gosto pelas minhas escrituras
e da tal moça que quer ganhar AQUILO.
Ora, me diga:
o que sei eu d’aquela, d’aquele ou,
até mesmo, d’AQUILO?!
Nunca se pode vir a saber o que vem a ser AQUILO...
Aliás, eu desconfio que essa tal moça
deveria vir morar aqui comigo...
ou então mandar todo o mundo para cá
e ficar sem aquele, sem aquela e,
até mesmo, sem AQUILO.
Mas, como trata-se de uma jovem
(e eu, apesar do tempo e do pesar, ainda gosto muito
d’uma jovem),
vou deixar no fim dessa prosa
um AQUILO —
e que ela pense que AQUILO é
AQUILO que ela gostaria que AQUILO
fosse


                                     A Q U I L O

JP
16/03/91

*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

quinta-feira, 19 de julho de 2007
















Bobos da Corte*

Um sonho:
Deus existia.
Era um Rei muito, muito rico-poderoso...
E do alto de sua opulência,
do fundo asfixiante da sufocante multidão
bajuladeira
— olhando tristonho o mundo cá embaixo,
dizia:
“Como seria monótona a minha existência,
sem esses... adoráveis meninos materialistas
e suas heresias...!”


*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.


Cordel*
 
Velhos trovadores de Cordel —
nos fios estendidos em rústicas bancas
como em veias corre o sangue
do seu povo lutador.
Tivessem os sábios acadêmicos,
imortais poetas,
mais vivência e menos ranço
— cantariam todos vossas rimas,
sábias obras-primas
de simplicidade e valor...


* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

sábado, 14 de julho de 2007



Rebuscar*

                                           .......................

         A palavra egocêntrica não pode, pois, ser a do escritor,
         havendo a mesma que se coletivizar, tornar-se
         patrimônio de uma geração, de uma época, de uma
         história. Jamais ser a auto-segregada, fechada, a
         palavra egóica, incomunicável, deixando mesmo de
         ser palavra, reduzida que é a um rastro, um traço fônico.

                         Gilberto de Macedo, in A política da palavra

Os muito herméticos que me desculpem
mas a mensagem é fundamental
Código
Mensagem
Decodificador
isso é poesia
— e ninguém escreve no Brasil
cartas em japonês.

Se ao menos meu vinho Joãozinho entendesse...
Mas ele é lavrador
e todos os meses vem pedir que eu lhe conte
o seu salário
Mas ele tem ouvidos
— e também precisa de poesia
como precisa de voz.

*Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

quinta-feira, 5 de julho de 2007



Exílio*

Nada me dói mais
nem a solidão que me vagueia
nem as dores que me infligem estas torturas
nem o inevitável saber-me inútil
nem a constatação da derrota irremediável
nem o abandono destas paredes frias
Do que tua ausência
Saber-me uma enorme árvore que cresceu horizontalmente
quilômetros e quilômetros
deixando as raízes cravadas no longe
entre as pedras
junto ao rio
por entre as paredes do velho casario
Nada me dói mais
do que tua ausência
rochedo.


* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Verso maior















Pequena Crônica Policial

Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, das bebidas...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriram, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,

Os seus sapatos antigos!

Mario Quintana*

*Poeta gaúcho (1906-1994); poema do livro Canções, publicado em 1946.

domingo, 1 de julho de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



Torturas*

Ontem eles vieram (diurnos vampiros)
com uma nova sórdida tortura
sutil
disfarçada em letal cristal polido
Tiveram ao menos a decência do álibi —
minha aparência: “É preciso raspar a cara”
E lá estava (sob ela) a triste figura
eu, o esquálido
o pálido
o esqueleto falante e teimoso
o graveto
o “caveirinha” dos vizinhos
eu, refletido na superfície polida do espelho
um traste
um velho protótipo do que sempre fui
Quiseram apenas que eu soubesse
que a dor persiste
que morri há tanto tempo que já nem sei
que morri e não me avisei...
Tivesse eu essa certeza
talvez até me fosse um conforto...


* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

sábado, 30 de junho de 2007















 
 
 

Pausa*

Pausa
silêncio em mim eu quero
uma trégua efêmera nessa vã batalha
Que importa se lá fora “eles” tecem
com finas teias, sua nova poesia?
Aqui por dentro sou solidão e abandono
sou minha redenção e minha própria agonia
Nessa noite-mais-uma
onde dentro de minutos os vampiros brancos
virão cobrar a lucidez
que nem mais sei se deveras tinha
eu, sofro a dor do cansaço
Cansaço infindo, cansaço insano
cansaço das dores-eletrochoques
cansaço de loucuras e luciduras
cansaços cansados de longas noites frias
Aqui nada mais quero
nem luta, nem glória
porque quase nada sou
sou apenas uma tênue e vã figura
o abandono e o esquecimento
dos que se deixaram lá fora.


* Poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha.

domingo, 17 de junho de 2007



O circo*

A dor?
Trazer sempre um circo na cara.
Ser como os palhaços, os mágicos:
sorrir, e sorrir sempre
— enquanto a alma é dormente.
Saber dizer o porquê da queda dolorosa do trapezista
que na alma habita?
Furar a lona.
Fazer um inventário impossível do circo-mundo talvez...
A queda não tem lógica.
A dor é.
Ah, a qualidade do espetáculo...
A platéia precisa de sangue —
e o palhaço do riso.
Sorrir para os que nos olham do alto como os trapezistas.
Dos que tentam devorar-nos como as feras...
O espetáculo não pára, é como o tempo.
A dor?
A escuridão é tão cômica...
É só olhá-la bem de perto, quando o elenco se vai
e no palco o espetáculo é o próprio Eu:
o momento inevitável de ser o show
— o palhaço-vizinho comedor de crianças
— o mágico que faz sumir o alheio para sobreviver
— o trapezista míope de tombos tantos
— o domador covarde que foge das feras
— o público medíocre da platéia nos espera...
Uma espera sem fugas, seja qual for o lado em que se

                                                                               [esteja.
É preciso não tremer no momento terrível e irremediável
— enfrentá-los a todos, a nós mesmos...
Ah, a qualidade do espetáculo...
Trazer sempre a cara nua e a alma clara.
Trazer a alma e a cara de uma forma ou de outra.
Ser como a dor, ser...
Sorrir, e sorrir sempre, do grande Circo que somos...
O espetáculo não pára.
Senhoras e Senhores:
sorriam...


*poema assinado sob o pseudônimo João da Rocha (um outro “eu” do autor,
de óbvia inspiração pessoana).












Folhedo

Esta folha,
manchada de versos,
leva-a o vento, o tempo.
Vai cair lentamente imprestável
no leito morno da sarjeta.
É preciso manchá-la,
matar a monotonia das linhas retas e brancas.
Esta folha,
d’antes limpa, imaculada,
manchada, imprestável, morta:
é adubo, estrume.
Vai cair sobre o campo árido e extenso,
indispensável (quem sabe)
para colheita.

sábado, 9 de junho de 2007



Os vaga-lumes

O que brilhará numa noite assim,
se a escuridão, implacável,
despenca das alturas?
Quem cantará,
se o canto certamente irá morrer
na indiferença desértica da planura?
Numa noite assim,
os vaga-lumes, assim, os vaga-lumes,
ainda assim, brilham...
Com suas asas rotas,
elevam-se no ardor do sonho inefável
de sua sã loucura.
Os vaga-lumes vagam...
Com suas pálidas chamas
brilham...
(E ao brilharem assim
até parecem cantar).

Herdeiros da perdida glória
da distante claridão,
os vaga-lumes vagam...
Herdeiros pobres do era,
com suas tênues lâmpadas
a noite afrontam...
Procuram na miséria das trevas
migalhas do perdido brilho
do puro ouro da passada manhã...
Os vaga-lumes vagam...
Pobres indigentes,
afundam-se na escuridão
e ainda assim
brilham...

quinta-feira, 7 de junho de 2007













413: fechado

        Para Hildo Machado

Ontem,
na superfície da noite:
a lua,
damas noturnas nas calçadas,
um lavador dos mesmos carros sujos de sempre,
mulheres pernetas,
caolhas,
sifilíticas,
concretas,
imaginárias,
bem-amadas,
mal-amadas...
Tudo estava como sempre esteve...
Porque “nada muda”,
nada deve mudar “a harmonia da paisagem
tão plácida”...

Ontem,
nas profundezas da noite:
(olhando bem...)
algo havia mudado...
Havia uma janela que insistia em ficar
antiesteticamante fechada
(antes havia uma luz naquela janela...),
a noite estava mais escura,
sem lua,
e as damas noturnas,
o lavador de carros,
e as mulheres todas,
mais tristes.

E a cidade?
(ah, a velha cidade...)
in(ex)plicavelmente mais velha...

terça-feira, 5 de junho de 2007

Outras navegações

 












“Nenhum artista tolera o real”, diz Nietzsche. É verdade; mas nenhum artista pode prescindir do real. A criação é exigência de unidade e recusa do mundo. Mas ele [o artista] recusa o mundo por causa daquilo que falta a ele e em nome daquilo que, às vezes, ele é.

Albert Camus (1913-1960), in "O homem revoltado"

sábado, 2 de junho de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



Olhemos as calçadas

         Ao poeta João Domingues de Melo

Andarilha sempre a olhar as calçadas,
como quem escreve ou lê nelas
algum poema deixado...
No passado (e é bem verdade),
houve um tempo em que
ao final de cada dia
(no fundo da algibeira)
infalivelmente deixava
quatro poemas contados...
Agora (coisas do tempo)
disseram-lhe porém para conter a poesia...
E ele segue, solitário
(alquebrado pelo tempo)
a olhar ainda mais
os poemas das calçadas...
Cumpre, resignadamente,
o seu difícil regime poético...
E sempre que encontra algum jovem
(que por acaso julga ser poeta)
diz, com sua coloquial humildade:
— Não, vocês é que são poetas...

Como ele, olhemos porém
as calçadas do tempo,
e digamos todos:
— Não, seremos talvez poetas
(quem sabe se amanhã não seremos soldados?)
e só quem há tantas primaveras
nas calçadas do tempo escreve poesia
pode dizer-se poeta...

24.09.92

sábado, 26 de maio de 2007



Poema para um velho poeta

O velho poeta...
Vi-o uma vez
e havia caído,
dilacerando a pele e mais ainda
a sua velha alma de poeta.
Olhei bem dentro de seus olhos
— e dentro deles de sua velha alma de poeta
que morria.
Eu, que vez por outra
visto ainda essa fantasia, perguntei:
“Ainda escreves poesia?”
Escrevia.
E continuará a escrever
muitos anos ainda, pois
o Tempo
(esse diretor de cena)
seus cabelos embranquecera,
rasgara a fantasia da alma
daquele poeta que havia,
matará (por fim) o poeta
— mas também tecera
(na sua velha máquina de fazer rendas
de enredos e tormentas)
a fantasia
de outro que agora o lamenta.

13/04/92