sábado, 2 de junho de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



Olhemos as calçadas

         Ao poeta João Domingues de Melo

Andarilha sempre a olhar as calçadas,
como quem escreve ou lê nelas
algum poema deixado...
No passado (e é bem verdade),
houve um tempo em que
ao final de cada dia
(no fundo da algibeira)
infalivelmente deixava
quatro poemas contados...
Agora (coisas do tempo)
disseram-lhe porém para conter a poesia...
E ele segue, solitário
(alquebrado pelo tempo)
a olhar ainda mais
os poemas das calçadas...
Cumpre, resignadamente,
o seu difícil regime poético...
E sempre que encontra algum jovem
(que por acaso julga ser poeta)
diz, com sua coloquial humildade:
— Não, vocês é que são poetas...

Como ele, olhemos porém
as calçadas do tempo,
e digamos todos:
— Não, seremos talvez poetas
(quem sabe se amanhã não seremos soldados?)
e só quem há tantas primaveras
nas calçadas do tempo escreve poesia
pode dizer-se poeta...

24.09.92

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