sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Poemas do livro "Folhedo" (Continuação)










Via crucis

Sobre o negro asfalto um cão morto:
os olhos baços a fitarem desconsolados o infinito,
estendido e desamparado no seu desconcerto de morto;
a vermelhidão de suas entranhas expostas a ecoar
estrada a fora, como um grito, impregnando de morte
o caminho dos passantes.

Mesmo os mais indiferentes, pestanejam ao passarem
adiante, tocados por sua terrível verdade.

(Quando ainda pulsava-lhe a tênue centelha
ele vagou vadio pelas calçadas,
enxotado e pisoteado pela humana brutalidade,
a pastar os restos dos açougues e mercados,
no seu andar medroso e indefeso
dos que já apanharam muito.
E ainda assim persistindo, persistindo, apegado
vilmente ao mundo).

Que potência desencadeou essa insignificância?
Que desígnio terrível a manteve viva
até o momento em que o carro do rico executivo
a libertou da vida?

Há de ter um sentido para essa vinda inútil.
Há de existir uma finalidade para esse absurdo.

Ó vós, vós que passais céleres
para o desempenho de vossas importantíssimas tarefas
– decifrai, decifrai
este enigma que sobre o asfalto jaz morto...

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