domingo, 30 de dezembro de 2007












A estrela que passou

Ontem,
passou pela rua e por mim
— e o passado veio chegando lentamente
com a brisa que me trouxe seu perfume.
Passou tão próximo que quase pude tocá-la:
ergui a mão indeciso,
e percebi que estava muito distante
— sempre esteve, ó minha estrela, muito distante...
Só em sonho pude muitas vezes tocá-la.
Só minha imaginação pôde muitas vezes tê-la.
Mas os sonhos se foram,
e como um meteoro
a realidade caiu dolorosamente repentina sobre mim.
Agora,
é apenas um pedaço de meu passado
que passa por mim e vai embora
— deixando-me a rua vazia...

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Outras navegações








 
 
 
 
 
 
 
       Por que escrever? Cada um tem suas razões: para este, a arte é uma fuga; para aquele, uma maneira de conquista. Mas pode-se fugir para o claustro, para a loucura, para a morte; pode-se conquistar pelas armas. Por que justamente escrever, empreender por escrito suas evasões e suas conquistas? É que existe, por trás dos diversos desígnios dos autores, uma escolha mais profunda e mais imediata, que é comum a todos. (...)
Cada uma de nossas percepções é acompanhada da consciência de que a realidade humana é “desvendante”; isto quer dizer que através dela “há” o ser, ou ainda que o homem é o meio pelo qual as coisas se manifestam; é nossa presença no mundo que multiplica as relações, somos nós que colocamos essa árvore em relação com aquele pedaço de céu; graças a nós essa estrela, morta há milênios, essa lua nova e esse rio escuro se desvendam na unidade de uma paisagem (...); a cada um dos nossos atos, o mundo nos revela uma face nova. Mas se sabemos que somos os detectadores do ser, sabemos também que não somos os seus produtores (...). Assim, à nossa certeza interior de sermos “desvendantes”, se junta aquela de sermos inessenciais em relação à coisa desvendada.
Um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo.

 

         Jean-Paul Sartre, in "O que é a literatura?"

sábado, 22 de dezembro de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)



Leitos dos homens, mãos dos rios

Meu rio chora,
e todo ele é uma enorme lágrima
— de tristeza e de pesar
por seus irmãos assassinados.
Irmão Tietê, irmãos amazônicos e tantos outros
sepultados inteiros na ganância humana
— cadáveres putrefatos de extensa agonia.

Meu rio chora,
pelas pedras e pelas ilhas
— um choro de prata e de ouro.

Meu rio tem medo,
da incerteza que há após aquela curva
— medo infindo do seu desamparo de velho,
medo de ter o fim de tantos outros.

Meu rio treme,
numa extensa paranóia poluifóbica
— medo líquido de amanhecer não mais eterno.

O meu rio, ah! o meu rio...
Nada sabe da vida nem de mortes,
nem de egoísmos, de ganâncias, nem dos abismos humanos:
só quem o olha vê nele reflexos seus
— reflexos das lágrimas, das tristezas, dos pesares,
dos instintos assassinos, da ganância e da podridão
que não o rio, e sim eles sentem.

O meu rio é feliz:
apenas passa
— sem saber que sua vida eterna e extensa
repousa no leito da limitada mão mortal humana.

sábado, 1 de dezembro de 2007

















Amparos

Meus sonhos voam por estes ares,
por entre estas torres, sobre os montes,
sobre distantes mares
e na superfície deste rio sem fim.
Meus sonhos planam como fantasmas,
como emaranhados de fumaça e brumas.
Meus sonhos vagam à noite por estas ruas
e dormem nus por estas pedras frias.
Meus sonhos cansam, invadem ingênuos estes templos
e rolam ébrios por este chão como entulhos.
Meus sonhos sentam-se nos bares, bebem amarguras
e tragam incógnitos por estas praças vis loucuras.
Meus sonhos já morreram vezes infindas
e por vezes tantas, insistentes, ressuscitaram.
Meus sonhos, têm irmãos inúmeros
que com eles vagam por esta noite incerta...
A meus sonhos só resta esta tênue certeza:
a quase ânsia de saber
que outros sonhos idênticos sonham seres iguais.