sábado, 26 de maio de 2007



Poema para um velho poeta

O velho poeta...
Vi-o uma vez
e havia caído,
dilacerando a pele e mais ainda
a sua velha alma de poeta.
Olhei bem dentro de seus olhos
— e dentro deles de sua velha alma de poeta
que morria.
Eu, que vez por outra
visto ainda essa fantasia, perguntei:
“Ainda escreves poesia?”
Escrevia.
E continuará a escrever
muitos anos ainda, pois
o Tempo
(esse diretor de cena)
seus cabelos embranquecera,
rasgara a fantasia da alma
daquele poeta que havia,
matará (por fim) o poeta
— mas também tecera
(na sua velha máquina de fazer rendas
de enredos e tormentas)
a fantasia
de outro que agora o lamenta.

13/04/92










Velho morrer

É preciso envelhecer,
sentir a miséria ainda mais profunda.
É preciso cair nas ruas,
de cansaço e de espera,
diante dos olhos da pátria cega.
Morrer aos poucos como uma chama
— a branquidão inútil dos cabelos cansados
estática diante da porta fechada
que lhes nega
a sobrevivência da vida que lhes resta ainda.

Os velhos morrem guerreiros assim
aqui,
sem a clemência última
de uma paz, ao menos.

24/01/92

quinta-feira, 17 de maio de 2007



História de todos os dias

A chuva caía um carro
acessos faróis, na pista de asfalto alto
o volume heavy metal
uma música dentro;
o cruzamento indicou uma placa
a 200 metros ele olhou sonolento
de relance pelo retrovisor alcoólico;
o som aumentou
marcava o dedo o ritmo
no volante da música
sobre o vidro dançava
o limpa-pára-brisa;
o asfalto devorou o carro
o cruzamento veio
dissonante o velocímetro marcava:
120 km por hora...
Avançou uma luz de repente
em vão os freios acionados
o choque
o baque
o carro caolho, ficou
um farol destruído, os frisos
enganchados, ficaram
no CD-play o som
o canto fúnebre dos pneus no ar
o eco
ouvia ainda quando trôpego
saiu ele para observar antes
da fuga, sua vítima:
um jovem jovem e morto...

sábado, 12 de maio de 2007



Eu, homem da Galiléia

Na verdade, vos disse tão pouco...
Eu, cansado de tantas faces tristes,
apenas vos disse: vivam.
Não havia um mistério,
não havia um plano...
Havia apenas elevações áridas,
uma montanha,
uma brisa tão suave a soprar sobre a terra nua...
Não pedi rostos velados,
escapulários, túnicas, mortalhas...
Eu, cansado de tantas faces mortas,
apenas vos disse: sorriam.
Não havia porque mosteiros,
não havia porque clausuras...
Havia apenas uma relva tão verde,
havia apenas uma esperança tão minha...
Eu, cansado de tanta dor,
apenas vos disse: lutem.
Não havia penitências, flagelos,
não havia confissões, inquéritos...
Havia apenas um vasto campo a esperar sementes,
havia apenas um sede urgente de libertação...
Eu, cansado de todos os Césares,
não pedi vossos tronos de oiro,
genuflexões, ósculos, lavabos...
Na verdade, quis tão pouco:
uma verdade,
uma paz,
uma esperança,
uma morte no madeiro
(por que negar o tão pouco que vos disse?).
Não havia porque tantas guerras santas,
não havia porque tanto esperar por santos,
não havia porque matar também as palavras minhas
e a minha alma já por demais dilacerada e nua...

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Verso maior



Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.

Carlos Drummond de Andrade*

* nascido em Minas Gerais (1902-1987), é considerado por muitos nosso poeta maior.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Do livro "Ruas e rios" (continuação)












 


O gol

Quando a bola magicamente ultrapassou a linha,
e a multidão explodiu patética da platéia,
ele correu pelo campo como um menino
que trazia nos olhos e nas pernas a ilusão
— a camisa suada e suja a tremer no peito feliz.

Mas, eis que de repente
o estádio jaz vazio
— gigantescamente vazio...

Olhou para si,
e para o estádio vazio em volta dele:
estava só.
Seus companheiros corriam distantes e mesquinhos,
como se o gol fosse só dele
ou só deles.
Não havia ninguém para abraçá-lo:
estava só...
Então ele chorou,
como só uma criança choraria
— ou um grande homem também...

quinta-feira, 3 de maio de 2007















 
Transitus

Todos estão sempre a passar,
a ir-se,
a tornarem-se densas recordações de brumas,
a tornarem-se tênues seres de lembranças.
Todos estão sempre a sumir-se
nas curvas da mesma estrada de sempre.
Ah, a inércia dolorosa de saber-se
uma placa de sinalização!
A dor durável e passageira de saber-se
dispensável muitas vezes.