terça-feira, 27 de novembro de 2012

Verso maior



           Tecendo a Manhã                            
                                     
                                    1

       Um galo sozinho não tece uma manhã:
       ele precisará sempre de outros galos.
       De um que apanhe esse grito que ele
       e o lance a outro; de um outro galo
       que apanhe o grito de um galo antes
       e o lance a outro; e de outros galos
       que com muitos outros galos se cruzem
       os fios de sol de seus gritos de galo,
       para que a manhã, desde uma teia tênue,
       se vá tecendo, entre todos os galos.


                                     2

      E se encorpando em tela, entre todos,
      se erguendo tenda, onde entrem todos,
      se entretendendo para todos, no toldo
      (a manhã) que plana livre de armação.
      A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
      que, tecido, se eleva por si: luz balão.


           João Cabral de Melo Neto*

*poeta pernambucano (1920-1999); poema do livro “A Educação pela Pedra”.

sábado, 24 de novembro de 2012

Poemas do livro "Folhedo" (Continuação)

                                Ode ao trio elétrico
O povo está na rua, ó cidadãos pacatos
                  – fazendo ginástica –
                  os corpos banhados em suores
                  exalam odores axilares.
E pipocam tiros, quebram-se garrafas:
ao som da música simplista e barata
refulgem facas
narizes sangram
meganhas pisam
ancas indecentes
agridem a pudicícia hipócrita.
                 Ó arcanjos dos altares!
                 Ó padres, ó saudosistas, ó beatas!
                 Quanta descompostura é o povo na rua!
                 Quanta banalidade, quantos mausodores
                                                                    que audácias!
Não meu povo!
olha a decência!
– a cidade velha não está disposta
a tamanhas festas!
Muros velhos, descuidados, racham,
mocinhas donzelas octogenárias desmaiam histéricas,
frades turrões desconjuram:
                  “É Satanás, ó poetas mortos e fétidos!
                  Ó cultura incompetente, ó famílias nobres,
                                                                      ó falências!
                  Eyyyaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!
                  Co-Cô-Co-Cô-Co-Cô-Co-Cô-Cô-Co-Cô-Cô!!!
                                                                        Satanás!”
Não meu povo
– criado nas procissões ordeiras,
ovelhinhas conformadas no rebanho –
olha a decência!
Não meu povinho!
tolerante, submisso, exangue, curto.
Não meu povinho!
patriarcal, fradesco, curralista, latifundiário.
Não meu povinho!
elitista, pseudo-luso-burguês, usurário, reacionário.
Não, não, não, meu povo. Caluda, basta!
                 Marcha, marcha, meia-volta!
                 Olha a ordem, meia-volta, volta!
                 Volta, volta, volta, e vem, e vai!
                 E meia-volta, volta, volta, e volta, volta!!!
             Ó conformismo católico, ó eficiência
               repressora e sacra! Ó canalha profana,
                                                                       ó magote!
                 “O costume das procissões encarna,
                 às maravilhas, essa solenidade
                 majestosa e lenta,
                 dissolvente dos frenesis coletivos” –
                 já dizia Elias Canetti.
Mas calhou que o povo está na rua, ó políticos,
                 ó CALHORDAS POPULISTAS
                 ó sábios e doutos
                 ó alienados, ó propinas
                 ó verdade
                 ó decadência...

O povo está na rua.
                 E aí... viva:
os rituais afros
o frenesi coletivo, báquico, tribal
libertador, catártico, histérico.
                 Viva:
as seitas protestantes, as possessões demoníacas
os terreiros de macumba
prostitutas do Camartelo
doidos de minha infância
o primeiro travesti
os sapateiros comunistas
                Viva!
Porque calhou que o povo foi para a rua
ó cidadãos pasmados
ó pseudos-aristocratas
ó intelectuais basbaques
ó carolas, ó condolências: entendam!

Inevitável. Urge cantar, cantar qualquer canto.
                É o novo-divino-trio-elétrico
                   detodososritmosbaianos
                                                     Amém, e basta.

domingo, 11 de novembro de 2012

 
 

                            Porque


                   Se apertares o gatilho
                   tua mão absolverá os culpados.
                   Sim, eles ainda estarão lá,
                   no teu modesto féretro,
                   dizendo, entre dentes:
                   – Nos livramos de um
                   inoportuno ingênuo incômodo.
                   E a maioria, infensa à grandeza do teu ato,
                   depositará,
                   sobre a lápide do teu túmulo,
                   apenas a palavra COVARDE.
 
                   Persiste mais um pouco,
                   irmão inoportuno, persiste.
                   Incomodando, espicaçando
                   com o teu simples ato de viver ainda
                   todos que lucrariam com a tua morte.
                   Persiste mais um pouco:
                   forte, íntegro e inabalável
                   como um rochedo.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012


                                    Areias

Não,
a recompensa dos que lutam não será
ver tornarem-se em mel as areias do Grande Saara.
É chegado um tempo sem milagres.
Os magos e os mártires morreram todos.
Aos que caminham é dada a dor
de vencer as areias escaldantes.
Lutar é não morrer, caminhar.
Os suicidas que se sentem e esperem
e morram, silenciosamente em paz,
e não riam nem chorem diante da grande batalha alheia.
A caravana passa...
Caminhar, caminhar...
Cantar um pouco, que a planície é longa.
Maldizer o nosso Grande Deserto?
A beleza dos oásis e a insipidez das areias quentes
é um grande todo indiferente a tua ira
ou ao teu canto.
Caminhar, cantar...
Cantar, não nos confins plácidos duma ilha,
nas veredas verdes dos mosteiros,
prostrados parvos nas pedras frias das divinas aras
– cantar juntos pela estrada árida.
Os exilados voluntários que fechem os olhos
e os ouvidos e se calem –
e se tornem múmias lendárias.
A caravana passa...
Pequenos pingos de mel deixados cair na água-luta
não a tornará mais doce
– pensemos na grandeza do gesto;
pequenos pingos de luta-água na aridez
do deserto-incêndio não extinguirão as chamas
– pensemos na grandeza dos colibris.
Caminhemos, cantemos, tagarelemos, lutemos.
A luta passará um dia.
A caravana passa.
Tudo passa.