Ode ao trio elétrico
O
povo está na rua, ó cidadãos pacatos– fazendo ginástica –
os corpos banhados em suores
exalam odores axilares.
E pipocam tiros, quebram-se garrafas:
ao som da música simplista e barata
refulgem facas
narizes sangram
meganhas pisam
ancas indecentes
agridem a pudicícia hipócrita.
Ó arcanjos dos altares!
Ó padres, ó saudosistas, ó beatas!
Quanta descompostura é o povo na rua!
Quanta banalidade, quantos mausodores
que audácias!
Não meu povo!
olha a decência!
– a cidade velha não está disposta
a tamanhas festas!
Muros velhos, descuidados, racham,
mocinhas donzelas octogenárias desmaiam histéricas,
frades turrões desconjuram:
“É Satanás, ó poetas mortos e fétidos!
Ó cultura incompetente, ó famílias nobres,
ó falências!
Eyyyaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!
Co-Cô-Co-Cô-Co-Cô-Co-Cô-Cô-Co-Cô-Cô!!!
Satanás!”
Não meu povo
– criado nas procissões ordeiras,
ovelhinhas conformadas no rebanho –
olha a decência!
Não meu povinho!
tolerante, submisso, exangue, curto.
Não meu povinho!
patriarcal, fradesco, curralista, latifundiário.
Não meu povinho!
elitista, pseudo-luso-burguês, usurário, reacionário.
Não, não, não, meu povo. Caluda, basta!
Marcha, marcha, meia-volta!
Olha a ordem, meia-volta, volta!
Volta, volta, volta, e vem, e vai!
E meia-volta, volta, volta, e volta, volta!!!
Ó conformismo católico, ó eficiência
repressora e sacra! Ó canalha profana,
ó magote!
“O costume das procissões encarna,
às maravilhas, essa solenidade
majestosa e lenta,
dissolvente dos frenesis coletivos” –
já dizia Elias Canetti.
Mas calhou que o povo está na rua, ó políticos,
ó CALHORDAS POPULISTAS
ó sábios e doutos
ó alienados, ó propinas
ó verdade
ó decadência...
O povo está na rua.
E aí... viva:
os rituais afros
o frenesi coletivo, báquico, tribal
libertador, catártico, histérico.
Viva:
as seitas protestantes, as possessões demoníacas
os terreiros de macumba
prostitutas do Camartelo
doidos de minha infância
o primeiro travesti
os sapateiros comunistas
Viva!
Porque calhou que o povo foi para a rua
ó cidadãos pasmados
ó pseudos-aristocratas
ó intelectuais basbaques
ó carolas, ó condolências: entendam!
Inevitável. Urge cantar, cantar qualquer canto.
É o novo-divino-trio-elétrico
detodososritmosbaianos
Amém, e basta.
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