Enquanto a banda
toca
À memória do mestre Chico Acioly*
Levantei, em pleno domingo, com a sensação de que as paredes tornavam-se transparentes, enquanto o telhado flutuava sobre minha cabeça como uma
pesada lâmina de vidro. No entanto, conhecia já aquela sensação: um estado
mental que emergia em mim sempre que, por algum motivo, a transitoriedade das
coisas, da vida, do mundo, tornava-se particularmente intensa. Um mundo que se
desfaz, derrete, desaparece, dilui-se em insignificância, carente de
durabilidade e sentido. Esse sentimento eu sabia, portanto, de onde se
originava, mas nunca como ou quando iria desaparecer, adormecendo em mim da
mesma forma abrupta como começara.
Decidi, então, sair para a rua, e caminhei enquanto as calçadas, os
postes, os paralelepípedos, as casas e tudo o mais que compunha a cidade dissolvia-se
igualmente um pouco de açúcar mergulhado em um líquido qualquer. Prossegui
assim até o momento em que percebi uma música suave que chegava até meus
ouvidos provinda de algum ponto, não muito distante, daquela cidade de
gelatina.
Aquela música me guiou, e não muito tempo depois cheguei a uma praça onde
uma banda de música tocava. Quer dizer,
afirmar que a banda tocava não corresponde exatamente à verdade, pois o que se
via ali, sentados em cadeiras brancas, dispostas em círculo, eram músicos
(cerca de trinta, não mais), todos vestidos de branco, que executavam
instrumentos invisíveis – gestos precisos e harmônicos, olhares compenetrados –
sem partituras ou maestro. E, entretanto, a música fluía, enchendo a praça e a
cidade com os sons daquela estranha retreta.
Havia, é claro, algo de mágico naquilo tudo. E não apenas por conta dos
instrumentos invisíveis, mas pelo fato, também logo percebido por mim, de que a partir
daquela praça a cidade solidificava-se, com as paredes, as árvores, as pedras,
tudo, recobrando a solidez e o brilho. Era como se a música invisível restituísse
as coisas ao seu estado anterior.
Foi quando observei, repentinamente, do outro lado da praça, um homem todo
vestido de preto que, por algum motivo, mesmo estando parado diante da banda,
parecia exalar pressa e impaciência. Eu diria que ele sequer ouvia a música.
Pelo contrário, provavelmente era da música que ele tirava seu semblante
inquieto, contrariado. Dei alguns passos
em sua direção, e resolvi, finalmente, perguntar:
– O que houve aqui? O que tudo isso significa?
– O que significa eu não sei, o problema é que eu estou atrasado! Me
disseram que ele estaria aqui, mas acho que vim ao lugar errado. E eu não posso
perder tempo, mesmo porque eu preciso fazer o jogo... Mas, veja aí (e apontava
para o relógio no pulso, num gesto de impaciência, uma espécie de tique
nervoso), já uma hora dessa e nada dele chegar!
– Ele, quem?
– O Chico Acioly!
Eu ia fazer outra pergunta, mas o homem, finalmente, num gesto brusco,
decidira partir, com aquele andar apressado dos indiferentes. E quando ele virou de costas, para dobrar uma esquina, foi então que divisei algo ainda mais
estranho: o homem de preto tinha um enorme buraco no peito, através do qual era
possível ver o que estava do outro lado. Sentei. Faltava alguma coisa.
A música parou repentinamente, e quando levantei a cabeça, estava diante
de mim o mais jovem dos componentes da banda. Era quase um menino, segurando o
seu instrumento invisível com um gesto característico. Como eu o olhava sem
entender, ele perguntou, e assim conversamos:
– Você também não sabia?
– Sabia, o que?
– O seu Acioly se foi...
– Morreu? Mas como? Ninguém me avisou... Se alguém tivesse me dito eu
teria vindo, eu teria feito uma homenagem, um texto, enfim... Mas eu estava em
outro lugar, eu...
– Ah, é sempre assim, sempre estamos em outro lugar.
– É, sempre é tarde demais...
– Não, aqui nunca é tarde...
– Aqui? Por que “aqui’? Que lugar é esse?
– Vejo que você é outro que não sabe, como o homem de preto...
– Talvez...
– Então, compreendeu agora?
– É a Cidade dos Sonhos? Engraçado, não lembro de ter adormecido...
– Não, é a Cidade da Memória.
– Ah, a memória é curta... Então logo tudo isso aqui também estará
desmanchando-se, como ainda há pouco. Você também não teve essa sensação?
– Sim, talvez... Tudo o que é humano é transitório... Mas, você ouviu a
música?
– Sim, ouvi...
– E não percebeu nada?
– Percebi... Mas vocês não ficarão aqui tocando para sempre... Ficarão?
– Não somos nós que tocamos, é ele.
– Ele?
– Acioly. Ele e tantos outros iguais a ele. Foram eles que construíram essa
Cidade.
– Mas ele se foi, do que adianta agora essas palavras ou essa música? A
hora das homenagens passou. Não seria melhor ficarmos em silêncio?
– Acho que você não entendeu. Não somos nós que tocamos... Você não vê?
Veja, ele está aqui! Todos estão aqui! Tudo bem, ver não é fácil... De qualquer
forma, independente de qual for a sua escolha, saiba que na Cidade da Memória
não se chega apenas pelo Caminho da Lembrança, mas sobretudo pelo Portal do
Coração.
O menino sorriu, comprimiu com a mão direita o meu ombro em sinal de reconforto
e foi se juntar aos outros. Eu finalmente havia entendido, por isso me ergui
para ir embora, e quando já quase deixava a praça para trás, ouvi novamente o
menino:
– Ei, para onde você vai?
– Escrever. Acho que ainda há tempo.
– Sim, sim. Aqui sempre há tempo.
Caminhei, e enquanto virava à esquerda na esquina de um sólido casarão,
ouvi que a banda recomeçara a tocar. Um dobrado, uma antiga composição que
altiva e festiva ressoava por entre os becos, ruas, ladeiras e praças da minha
Cidade do Invisível.
Francisco Araújo Filho
*
Francisco Acioly de Figueiredo, o mestre Chico Acioly, faleceu no último
dia 24 de fevereiro deste ano de 2016. Foi um
penedense excepcional com uma história de luta no carnaval, na
música, na imprensa, na politica e na cultura local. Fará falta.