domingo, 24 de fevereiro de 2008

Poemas do livro "Ruas e rios" (1994)











Capa do livro "Ruas e rios"; desenho de autoria
do artista plástico penedense Joan Barros


 
          Música para viagem ou...

       Ruas e rios & Outros Poemas do Chico penedense, salta-nos aos olhos como: um grito MODERNO ecoando na rocheira ou música para viagem. Esse paroxismo habita por entre as pedras sedimentadas pelo tempo, e nauseosas pelo conformismo penedense. Explorando sistematicamente todas as variantes que lhes chegaram às mãos, torna-se Chico o mais significativo representante dos diluidores (classificação poundiana) em nossa terra.
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       O nosso Chico, assim, nos impõe com prazer uma vertigem, ao nos conduzir ao emaranhado de categorias e meneios de seus respectivos valores com que exterioriza todas as coisas do seu mundo.
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      Ezra Pound dizia que a beleza poderia ser definida como uma “adequação ao objetivo”. A poesia do nosso Chico não perde isso de vista, logo, não passeia pelo terreno do Kitsch.

                    Sérgio Paulo R. Nascimento*

*No Prefácio do livro “Ruas e rios”; Sérgio Paulo é jornalista, poeta e intelectual penedense.









 




Ruas e rios

Na rua noturna da minha cidade:
a lua sobre a rua azul de paralelepípedos incertos,
silêncio transpirando das lâmpadas sonolentas
de vapor de mercúrio;
as casas dormem numa ressonância surda

de cansaço humano,
e ao fundo, um rio velho embala as margens de seu passado
num passar interminável de recordações profundas.
Tristezas?
Não... Os velhos rios são eternamente felizes.
Só nas ruas noturnas (vistas de uma janela) há tristezas.
Só nas ruas que se prolongam como noites.
Só nas nossas ruas interiores:
das incertezas,
dos silêncios, das transpirações e sonolências,
dos vapores, dos mercúrios,
das ressonâncias dos rios velhos e dos cansaços humanos.

Mas, sempre amanhece (por uma fresta no telhado)
um outro mesmo Sol,
e então não há mais ruas noturnas:
depois do amanhecer
todas as ruas são como um rio velho...


Amor apenas

Ao céu, ao rio e às pedras
que construíram e constituem
as casas e as ruas da minha cidade

Para saciar essa vontade insana de sorver teus ventos,
escalei avidamente a torre deste templo.
E aqui, já do alto, adormecida e bela te contemplo nua,
com as lindas linhas do teu corpo nu imitando ruas.
Ah! me enfeitiçaste, formosa dama...
Vou me jogar torre abaixo:
só assim poderei descansar minhas carnes
nas entranhas tuas.
E quando isso acontecer, ó cidade minha!
— esquenta com tua terra quente essa minh'alma fria.















Despertação

A todos aqueles que se perderam pelas veredas

De repente, no meio da noite,
as paredes do seu quarto flutuam ilógicas sobre ele.
Ergue-se, e vaga solitário pelos seus escombros:
tudo é transparências e brumas,
tudo é incerto na sua terrível lucidez.
Procura algo sólido onde prender suas mãos invisíveis,
procura uma certeza que ao menos o engane,
procura sonhos, esperanças, quimeras...
Mas tudo é tão ilogicamente real nos devaneios
desta sua noite de insônia:
as ruas vazias-incertas erguem-se diante dele
terríveis como feras;
o rio, velho amigo, é de vinho, de planos
de fugas e de velas...
Não sabe se deve fugir, dormir e sonhar
ou se tudo é pesadelo e precisa acordar...
Não sabe se lhe dói mais
a lucidez ou a loucura.
Não sabe em qual delas está
sua cura...

domingo, 17 de fevereiro de 2008



Jovens ruas

Na noite molhada de chuva,
ruas caminham úmidas pela cidade sombria.
Perdem-se pelos becos incertos,
vagam periféricas pelos cruzamentos confusos,
procuram traçar numa esquina suas rotinas.
Para onde vão aquelas ruas incertas que não vejo
seus destinos?
Todas as ruas da cidade têm no fim uma certeza,
só aquelas jovens ruas não sabem caminhar
pela cidade velha sozinhas...
Quando se construíram, a cidade-mundo já era
uma anciã débil-confusa.
Ninguém traçou pra elas planos lógicos.
Ninguém lhes deu mapas de seus becos.
Agora, sempre que chove (e a chuva sempre vem),
as ruas jovens ficam alagadas, bêbadas,
inseguras, vazias
— esperando um Deus divino ou infernal,
que lhes dirá um dia:
“É por aqui, ruas minhas”...

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Verso maior













            
Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das

                                                                                 [etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
                                                                                       [sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos.
Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

              Fernando Pessoa*
                          *poeta português (1888-1935); poema por Álvaro de Campos.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Do livro "Ruas e rios" (continuação)
















Escombros

Vago por entre meus escombros
com as incertezas das ruas por dentro de mim.
Tudo cai, tudo jaz, na minha cidade vazia:
casarões, glórias, memórias, templos, pretensões
— lembranças de um passado que não vivi.
Na mais terrível noite,
na mais clara manhã
— tudo cai, tudo desmorona vergonhosamente.
Será que só eu vejo?
Será que é só em mim que tudo cai?
Será que me invadem ou projetam-se de mim
tantas ruínas?
Nunca saberei, apenas olho passivamente...
Tudo é incerteza, dúvida, destruição.
Tudo cai, tudo jaz, na minha cidade-abandono.